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Um errante em argolas de fumo mesto

sexta-feira, outubro 31, 2003

Número 40

40 cigarros fumados em 40 horas esfumadas. Sete da tarde e a porta fechada
atrasei-me
sento-me na pedra da fachada encostado na parede vermelha. O estendal ostenta uma toalha enxugada e as molas morcegos, esperando por uma outra prensa numa outra toalha.
música africana, cheiro a moamba
eu olho as portas incógnitas danço nas portas incógnitas e as velhas atónitas parecem sorrir e comentar “velhos eram os tempos que agora rejuvenescem!”.
4 são os toques na campainha avariada do número 40 da rua sem nome atravessada na calçada.
“Quero entrar, quero ver-lhe a vida, sentir-lhe o cheiro da goma na sua roupa…”
e no bater do relógio
“… sentir o pulso na sua mão, a pressão arterial elevada pelas subidas e descidas das colinas, ler as suas rugas e compreender as suas cicatrizes”
da cidade que cresceu
(e que se modificou)
dos passeios vazios e cheios de escuro. Das esquinas iluminadas e das ruelas atravessadas
trazes-me um café?
Onde estão os miúdos?
obrigado
Para onde fica o largo?
não quero o café… apetece-me uma cerveja… ó Senhor hum.. traga-me uma cerveja geladinha, por favor… vou-me embriagar… será que não está mesmo ninguém no nº 40?
A cidade no Verão deixa de ser cidade, torna-se numa aldeia
Obrigadinho
onde cada esplanada é palco de uma conversa sobre nada e sobretudo sobre a vida.
Mas Marte vê-se e a Lua também… onde andará Venús?
e o Agosto?
Parto o copo na chávena. Lá fora o segredo cai, é atingido de raspão por uma bala. Está escuro e o candeeiro não luz ou se luz é levemente. São milhares de mosquitos sequiosos de sangue quente e doce, do meu sangue, em volta da lâmpada que não encadeia.
Já voltaste? E a viagem?
que viagem?

Vejo a rua como se as pedras da calçada nunca tivessem sido colocadas entre um passeio e o outro. Como se a estrada fosse de terra batida por pegadas insistentes para chegar a lado nenhum: o passar por é sempre mais simples do que o ficar.


E então?

segunda-feira, outubro 27, 2003

A tarde de chuva

Beijar um pé e gostar. Cuspir na mão para apertar outra e respeitar. Levantar o sobrolho, dizer e repetir: "é por aqui". Dar um passo e não recuar, confiar. Despejar as raivas e angústias no lavatório com um escarro, observá-lo a escapar-se pelo cano abaixo enquanto a expressão vai mudando no espelho, sorrir e dizer: "you're the man!". Pegar no telefone e ligar a quem já não te liga há muito e reviver. Abrir uma caixa do correio e ler num postal alheio: " Foste a queca mais frouxa e deliciosa que tive até hoje". Suspeitar que hoje vai chover e não ligar.

Serrar a talas e implodir o betão que te cobre o corpo e fugir para onde sempre quiseste ir.

Transferir trepidações para a minha cigana companheira, dizer-lhe vibrante que a amo. Apagar as luzes e improvisar um colchão num chão de caruma.

E então?

terça-feira, outubro 21, 2003

Bebe-me

Tens a chuva nas mãos, não é? Tens a pretensão de ser uma poça, é?
não... tenho a pretensão de ser uma cova das mãos… E então?

sexta-feira, outubro 10, 2003

O recorte da lua

Já se tinha estendido ao relento e as primeiras horas da madrugada ofereciam-lhe a humidade que os seus ossos não necessitavam. Não se importava no entanto: o vento não incomodava e a lua comunicava-lhe que as palavras eram como tapetes gastos com o tempo, perdiam cor. A lua convidava-o a olhar, a escutar e porque não a tactear a terra molhada.
O cheiro de terra molhada
Ver-se no reflexo de uma poça era algo que se havia habituado nestas noites e o cigano, olhava para mais que uma mera silhueta, ele escutava-se e falava para a Deusa Lua:
Nénias em fumo mesto, vénias com que te agradeço.
E então?

sexta-feira, outubro 03, 2003

Dancemos

A mulher escondia-se atrás de um cabelo negro e longo, os miúdos ainda pequenos não perguntavam quem eu era. Afastou o cabelo e perguntou-me se precisava de alguma coisa
sim, estende-me a mão e leva-me para casa
“não, estou de passagem, obrigado.” Molhei os lábios e senti a língua a gretar “água, preciso de água, pode ser?”
O sorriso! O sorriso
as mãos que pegavam na vasilha e a água que escorria pelas mãos que a seguravam.
Acenei e disse bom dia. Dois homens, romani de bom porte, aproximaram-se de mim quinhentos metros adiante. A máscara dura, depressa amoleceu num cortês e simpático aceno. Penso que o meu sorriso terá disfarçado o esgar de desconfiança na minha cara: nunca confio à primeira num homem que me olha estrábico.
São duas da tarde e o sol cai a pique, todas as sombras são pequenas mas grandes o suficiente para os meus olhos descansarem. Os meus pensamentos diluem-se nas gotas do suor à velocidade a que bebo um trago. Cada sílaba escorrida no meu raciocínio
um gesto lento que afasta moscas
derretendo toda e qualquer intenção de movimento. Adormeço, ou penso-me a adormecer e a vida a caminhar no meu peito com o seu espectro de caleidoscópio. Danço num azul acetinado ao som de uma guitarra vermelha cor de sangue de boi. A cigana está lá, de pernas vibrantes e mãos ondulantes – e eu vibrante e ondulante - um passo em frente é tudo o que eu preciso para que deste círculo de fogo, os meus pés se crepitem num ritmo frenético e acompanhem as palmas finais, a minha companheira dançarina.
E então?

quinta-feira, outubro 02, 2003

Liberdade

Segue-me através dos tempos coléricos. Segue-me de olhos fechados e pensamento atento. Eu ceder-te-ei os meus olhos periféricos. Vigia quem te fere em pesadelos, confronta-o e sangra-o… suga-o!
Deve-me uma explicação, senhor!
Que eu não te perceba…
Aquele homem não existe, não conhece o sabor dos ossos moídos nem o som dos dentes a ranger. É um holograma esmagado contra a parede: a cabeça num graffiti dizendo palavras de ordem social, as pernas encravadas em tijolos à mostra, o tronco espancado de forma brutal e os braços enclausurados num bocado de cimento mal pintado. Que me poderá ele dizer que eu possa aprender? Não falamos o mesmo código pois somos de contextos diferentes.
De um cigano espera-se tudo menos que cruze os braços e eu, nunca cruzarei os meus. Os gadje não sabem o que é viver. Vivem a trabalhar para pagar uma caixa de fósforos, a que chamam lar. Estão duas horas por dia enfiados num carro e um caminho de quinhentos metros, transforma-se numa viagem de duzentos kilómetros. Eu tenho a minha mula e enquanto passo por eles, as suas expressões faciais, vão mudando de "olha o ciganito" para "olha que esperto, o cabrão". Acho que no fundo no fundo, os gadje invejam-nos. Temos uma coisa que eles há muito perderam: liberdade! E temos o prazer de dizer liberdade bem alto.
E então?

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