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Um errante em argolas de fumo mesto

sexta-feira, novembro 28, 2003

Injusto criminoso

A verdadeira figura de um injusto criminoso, é a de um barbudo seboso, de vislumbres deslumbres de uma aurora seca, fumando um cigarro.

De manhã a estrada é fechada ao silêncio, os seus olhos não se abrem mas os seus neurónios implodem, mastigando as sinapses, nervosas, moendo-as e colando-as nas paredes do crânio – é a puta da ressaca – pensa. As imagens auditivas, incontroláveis, em frames vermelhos repetidos… e ele não tem escolha: vai ter de fechar a janela ao vento que transporta o ruído… de qualquer forma hoje, ele sabe, o dia vai-lhe correr bem…
Fechem a porra da janela, não vêem que tento dormir…?
Não fecham?!? Então estou-me a cagar! Também não me levanto!
Fechem-na, foda-se!!! Ah! Estou tão farto de viver sozinho…!
Ressaca café, café ressaca, café cafeína… cafeína! Nicotina tabaco, inalado é nicotina que se precisa para um dia de trabalho!
dEUS nos “headphones”, o vibe que precisava para me dar ritmo… compro a Cais! A mulher pede-me 3€, eu estranho e ela diz-me que o preço são 2€, mas que “só ganhamos 20 cêntimos por revista!”… Ok, toma lá 3€ e não fales mais… ao menos engana-me frontalmente – penso – e pára de falar, não te quero ouvir mais! Tens anos de Casal e as tuas artimanhas não se foram com a limpeza do pó – reforço, pensando – é a tua sobrevivência urbana, não é?… ok, ok…


E então?

segunda-feira, novembro 24, 2003

E então?
Recluso no chão

Foste um flash ou um piscar de olhos a breves tremuras de mão… deitei-te o dedo, soube-me sedento de te dizer algo, desconhecia-te, sabes? Senti vontade de me sentar ao teu lado e perguntar-te se estavas mesmo a gostar daquilo que lias: é que o interesse em ti, era sei lá em quê, era talvez o gosto de saber que ainda restam pessoas que se sentam num vão de escadas a ler, era o de entender o que leva alguém que não possui mais do que duas caixas de cartão para se proteger do despacho do tempo a guardar um livro que trouxe de outro lugar noutro tempo… e noutra vida também.
Tu seguravas o livro como quem agarra um copo de vinho tinto e a forma com que te ouvi a ler, declamando o texto, interpretando-o, dando o corpo à destreza da palavra esgrimida pelo escritor, era como ver um actor na boca da cena: vibrante.
Como este pão seco como não comia a sopa na prisão, com satisfação. Perdi a identidade, ficaram-me com os documentos, não posso trabalhar, não posso alugar um quarto, não posso viver como um homem livre. É como se as ruas substituíssem o gradeamento das celas. Roubei e trafiquei, desgracei a minha vida. Julgava que a minha pena tinham sido os anos de encarceramento. Mentira, a minha pena foi terem-me ficado com a dignidade nas prisões da burocracia.
O teu olhar fixo na côdea de pão, os dedos e as tuas unhas negras, segurando-o. O que é que te fizeram, homem? Onde foi que a tua voz se reteve? “Está num contentor de lixo”, terás talvez pensado…
Talvez não fale mais, talvez o seu dia-a-dia nunca mais se modifique, a sua respiração se torne cada vez mais ofegante e a tosse o contamine até ao sangue… talvez a indiferença dos outros seja para si melhor,
As estações olham por mim, repetem-me que vou ver o próximo Inverno, a próxima Primavera, a próxima estação… eu sinto que sim, tenho esperança que assim seja… pão e livros, é tudo o que necessito.
um recluso nas páginas de um livro, é isso que ele é.
E então?

sexta-feira, novembro 21, 2003

O velho

Acredito que as aparas dos lápis devem cair em espiral no chão, que o carvão deve ser esmagado com a ponta dos dedos e depois espalhado nas folhas para realçar as sombras
Eu não vi de onde vieste
Não acenei nem reparei
e que depois, de lápis afiado, espetá-lo na nossa pele e arregalar os olhos com a fina dor. A caneta ainda borra: não me parece nada permanente o que escrevo,
Que as acendalhas também se apagam
Quando o vento as atravessa e as agarram
de que me serve a palavra, se ela não ficar? De que me servem as memórias se elas não ficarem calcadas no papel… não pretendo ficar com recalcamentos.
Da penumbra para o chão
Em vão
Viro o lápis ao contrário, pressiono-o contra a pele do papel extraindo uma cara do mesmo.
Num vão de escada te sentaste, a escuridão vestia-te fria e um feixe de luz iluminava-te a folha que lias: como eram quentes aquelas palavras. Como se chamava o velho que te interpelou? Que fazia ele
Poesia
Eu cheiro a maresia
(pois cheiras)
Assim não escrevo… não gosto de lápis demasiado afiados e gosto ainda menos de canetas de tinta azul. Como é que poderei escrever se as palavras desenhadas me parecerem sujas? Gosto de riscar, mas isso não é sujidade, pelo contrário, é limpeza. Por isso risco, risco, risco até deixar de serem riscos e passarem a ter forma, uma forma de um velho sábio
O velho
de um velho sábio que conhece a história dos dias e a memória das noites.
O velho que anda nas ruas com um saco plástico verde, de respirar pesado mas de passo ainda leve. Tosse e um bando de pardais levanta voo para um outro poiso, assustam-se com a sua sombra, nem sabem que ele aprendeu a conviver com ela.
O velho escreve poesia, diz que publica e oferece-me um livro com uma dedicatória ou “um lembrete” diz: « Não digas forma quando pedes conteúdo, não julgues quem te pede defesa e regressa para que a partida te faça sentido.». Não quis perceber o que quis dizer um velho que mal me conhece.
Amarroto o papel pois não gosto do desenho. Nunca tive jeito para o desenho, sabes? Nunca consegui atravessar os riscos pelo papel para que este contrastasse com uma figura.
E então?

quinta-feira, novembro 13, 2003

Ruído


A torneira não pára! Toda a noite neste gotejar ternário um-dois-três... porra de compasso... os canos ferrugentos o meu dorme-não-dorme em cristais de sais que ora estalagmite ora estalactites nos meus olhos, digo. A janela, que não fecha e dança entre a calha e a madeira do soalho
Bate
O frigorífico que de meia em meia hora acciona um mecanismo estranhíssimo que o faz vibrar por toda a casa
e eu tenho frio
O chão que chia, como se alguém por ele caminhasse aos apalpões no escuro. As portas que se entreabrem deixando o respirar das assoalhadas transpirarem
não vejo nada
Dança na água, dança como se saltasses para o rio. A entrada na água tem sempre mais impacto de braços abertos e eu quero muito splash, quero ver a água a borbulhar enquanto vais ao fundo e esse ar que te deixa se liberta para a atmosfera.
não vejo nada
enfio-me no lodo… lodo até ao joelho, que nojo, parece merda… o cheiro é tão urgente como o da merda… vem até mim, vem, dá-me a mão, afunda-te aqui comigo… deixa os sapatos, não te farão falta e eu só quero que me dês um tiro na mão direita para que o meu sangue se dilua comigo no lodo, para que os meus dedos nunca mais, mas jamais… jamais..
O meu vizinho de cima é adepto das rádio-transmissões, tem o péssimo hábito de comunicar com um seu amigo neo-zelandês: a nossa madrugada é uma bela sesta lá. Quando tudo deveria estar em silêncio, os vestígios de ruído humano, já pouco o são. E muito embora, a pianista toque o Meditation de Keith Jarret, os meus lóbulos cerebrais há muito que perderam tal capacidade, penso em tudo, penso em rastilho e as imagens saem em panchões
Sentes as minhas mãos a gelarem-se? A ponta dos dedos a perderem vida, a enegrecerem-se e os meus lábios a pelarem-se? Mete a tua mão no meu peito… não o sentes, pois não? E a minha pila… morreu… onde estarão os meus olhos?
não vejo nada, tenho frio
as moléculas separam-se em mais moléculas tal como
O barulho que não me deixa dormir, a serra eléctrica… o nariz eléctrico… o nariz… as narinas… a serra… o ronco… o ronco.. ronnnc
eu me desfaço… faço eu aqui?
E então?

quinta-feira, novembro 06, 2003

Vidro

Do alto da colina, deixo descair o meu halo até ao fundo do vale, até ao horizonte onde o oceano se descai. Avisem-me quando lá chegar, chamem-me pelo nome próprio e contem histórias de tudo aquilo que não vivi mas que sobreviveu como meu à minha existência. Eu não tenho nada… tudo o que carrego (e esta palavra tem o peso que desejo) são vidas que partilharam comigo e que me pediram que as vestisse como minhas.

assustam-me as planícies
Eu gosto de andar até não aguentar
quer dizer, assustar, não me assustam, mas acho estranho que não tenham o mesmo efeito de respeito que o oceano e as cordilheiras têm. Aquela história de contemplar e sentir assim um arzinho a subir pelos pulmões e o oxigénio a penetrar pelas narinas lenta e silenciosamente com medo que os elementos se despertem.
Lembras-te quando dormíamos ao relento
(sim, o que é que tem?)
Era frio…
(hum…)
sabes, não rejuvenesço quando a aurora faz vibrar as ruas. Sou do sossego das sombras, aquele animal que se esconde nos arbustos e sobe às árvores quando ameaçado. Se me chamarem de longe, faço-me despercebido. Desconheço aqueles que se desviam do sossego e se atiram, iludidos à agitação das águas, EU SOU a agitação da rua deserta, a palavra maiúscula que se desenha no papel quando se grita silêncio numa frequência inaudível. Por mim, o tempo esgotava-se num segundo e inventava-se outro, menos viciado mas mais dinâmico e elástico… gosto das rugas… aliás, a única coisa que guardaria do Tempo, seriam as marcas de vida que este nos deixa. Acho piada olhar para um gajo e ver que este já se fartou de viver, ele sorriu, chorou, andou preocupado, ficou careca… olha-se nos olhos e lê-se vida na íris.
O que é que se passa contigo? És muito estranho…
(não sei o que é ser-se estranho…)
viajo como quem perdeu um pedaço de si e o tenta recuperar, como um acto de desespero, procurando em cada milímetro de terra o caco de vidro que ainda poderá brilhar com o sol
Parece que nunca estás cá…
(e não estou…)
se de tanto ter sido espezinhado o caco se transformar em areia, tentarei guardá-la num frasco e juntar aos outros milhares de grãos de areia para derreter e esculpir numa forma que me devolva a forma.
Não gosto de falar contigo, assusta-me o teu olhar vidrado
(já me vais entendendo…)
E então?

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