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Um errante em argolas de fumo mesto

quinta-feira, abril 29, 2004

Aos poucos

Ainda dorme. Dei um toque no copo para que despertasse aos poucos, para que viesse aos poucos, aos poucos da realidade cinzenta em que se habituou a coabitar. Chegou pelo seu pé, desgrenhado, com ar desgraçado e com palavras desfiadas por um raciocínio cortado. Eu dei-lhe o braço e apoiei-o sem asco. Ele sorriu sem dentes, sem muita expressão mas com os olhos puros, que só alguém que se perdeu num cativeiro pode dar. Eu senti-me eufórico e no entanto emocionado, como que a olhar para um fogo de artificio que dançava, ali, diante de mim.
Não me contou muito, não me queria contar muito e eu percebi. É muito duro partilhar algo que se pretende que fique nos confins da memória. Ele soube-se quase no infinito da noite e agora, com olhos de toupeira custa-lhe ainda a enxergar, por isso tacteia tudo com muito cuidado.
Aos poucos, dei-lhe um pouco de espaço, para que se virasse aos poucos. Para que respirasse da chegada de uma coreografia tirada de um quotidiano ainda demasiado vivo. Muitas camadas de pó haviam-se acumulado desde que partira e a carta que me deixara escrita, permanecera em repouso, à espera que se confirmasse o seu "volto já". Pedi-lhe que dormisse mais um pouco, afinal - pensava - há muito que não dormia uma noite completa e em absoluto repouso.
Eu fiquei ali, espreitando o seu sono, incomodado com os seus balbuciares suados. Até ser dia não mais acordou. Naquelas horas todas em que dormia, uma só frase, se me repetia em loops cadenciados: "estás vivo, estás aqui e vais recuperar a tua vida aos poucos, aos poucos...". Sem estigmas, sem traumas, aos poucos porque um puzzle não se monta atirando as peças todas ao ar. Os encaixes estão por aí... procurando, aparecem.
E então?

quarta-feira, abril 21, 2004

Circunstâncias


Se calhar implodíamos as paredes da vergonha e moíamos, tijolo a tijolo de cada um dos fragmentos de memória, até serem pó.

Acredito que a culpa te sufoque, a verdade te arrepie e a vontade de te veres livre desse sentimento te faça jurar que nunca mais. Não consegues suportar mais uma memória tão gelada que te queime as mãos, pois não...? Percebo. Quem te havia ver a mudar. Quem ousaria adivinhar que um dia te regenerarias? É tarde bem sei. Até preferias talvez nunca ter sabido o que é o arrependimento. O arrependimento é ácido sulfúrico na pele e a culpa, um líquido que dilui a voz. O teu peito há-de ficar esmagado por esse não poder refazer os actos. A vida por vezes escreve-se difícil e logo por azar terás sido apanhado entre duas aspas: "criminoso".

Dentro de ti não há culpa, não há inocência: há circunstâncias. Esses malditos estratagemas que maquinavas sempre a desprezar as consequências. A essa coragem eu sempre brindei com um copo cheio de estupidez. Não te doem os joelhos na reclusão? Não te dói a liberdade quando a humidade se acumula na tua pele? Não me acuses de escarrar conselhos! Não te atrevas, pois então serás o meu escarrador...

Desengonças-te, quase nú e um quase zombie pelas passagens apertadas, por entre cheiros a merda e urina acumulada de anos. Já não recuas. Conheces cada centímetro do chão que varres, tal a força com que esse local se interioriza em ti. Pálpebras mal abertas, mal habituadas à luz. Olhos aos cacos, comatosos. Como é isso de nada sentires? Como é a essa realidade? Valeu a pena? Pois... as circunstâncias...

E então?

sexta-feira, abril 16, 2004

Fareja, marca território

Fareja, marca território. Sabes que naquela rua escura ninguém te poderá vigiar. Suja, sê igual a ti mesmo. Come nos caixotes os restos podres que alguém não quis comer... estás magro, come!
Fareja, marca território. Não sabes se amanhã o pouco que te custou a obter, não será conquistado por outro mais forte. Dorme de dia, vigia à noite. A vigília é sábia e poupa-nos umas dentadas.
Fareja, marca território. Não confies em ninguém, não antes desse alguém confiar em ti primeiro. Lembra-te que quem tiver medo de ti, será dominado (invertendo posições, também) e que quem por ti mostrar respeito, será merecedor de um voto de confiança; eu disse um voto de confiança, não a tua casa.
Fareja, marca território. Contempla a noite, contempla silhueta do casario pela colina abaixo, abriga-te do vento gelado das avenidas. As luzes das caixas de fósforos vão-se apagando aleatoriamente. Apenas o velho do terceiro andar do número 39 a deixa acesa. Não sabe que o escuro o protege.
Fareja, marca território.
E então?

quinta-feira, abril 15, 2004

Fotogramas

Não há trocas de palavras. Não há frases que terminem em interrogações de tudo bem. Não há planos fixos, há um piscar de olhos. Não há quem nos diga que tudo continuará desde que - pior seria - respiremos. Não há sentido para a morte excepto na ponta de uma faca afiada. Não há.
Ou há? Há. Há o antes e o depois. Há tudo o que culmina em e há tudo o que foge dos dedos depois da suspensão do tempo, depois daquele incrível, escasso mas no entanto interminável intervalo de tempo em que tudo pára. Não tens de aceitar, tens de viver com isso, seja bom ou seja mau. É essa a foda, boa ou má.
A cama e a mulher, nua nela.
O fumo e o coração que vai quebrando.
A silhueta dos mamilos,
Firmes,
cheios de vida
Ou o coração que vai cedendo…
Hoje arrumou-se mais um dos milhões de fotogramas que se instalam na gaveta caótica de todos nós. Cada um, tu, guardaste milhares de imagens que te picarão a cabeça até ao resto dos dias, mesmo que o resto dos teus dias termine amanhã. Mas para que servem estas imagens? Para te mostrar que estás vivo? Pode ser... mas não. Para que aprendas a ser estúpido todos os dias, porque toda a gente ou se está nas tintas para o que vives ou nem tem tempo para olhar para o lado. E isso é o que pretendes fazer? Abrir uma lata de cerveja e arrotar para o lado? Um bom princípio será na minha perspectiva, colocares a mão à frente quando o fizeres, os outros apreciarão o gesto e podes ter a certeza que olharão para ti de outra forma. Passarão por ti na rua e apontarão, comentado para o lado: "aquele gajo é um tipo asseado". Se uma senhora de idade passar por ti na rua, cumprimenta a velha, não te custa nada.
Qual é ideia disto tudo, perguntas tu e bem (que eu no teu lugar, faria o mesmo). A ideia é seres menos mais um. A indiferença é uma coisa estúpida e estupidifica (e que frase estúpida, dirás).
O real disto tudo, é que tu, eu e até aquele gajo asqueroso que almoçava na mesa ao lado no outro dia, somos pedaços de memória de outras pessoas, inclusivamente de pessoas que nem conhecemos nem nunca ouvimos falar. Somos e o mais caricato, é que a nossa vida muda com esses “frames”. Um cabeludo oleoso com um estilo foleiro pode realmente mudar a forma como vives.

Não descobri a pólvora mas apeteceu-me dispará-la.
E então?

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