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Um errante em argolas de fumo mesto

domingo, julho 25, 2004

A morfologia do Mestre Paredes
 
Ouve um discurso a sussurrar nas pontas dos dedos: firmes, ágeis e livres para se lançarem ao bailado do vento.

Estas são as mãos que mexem e remexem nos poros fazendo festas; estas são as mãos que recolhem cravos vermelhos para distribuírem um por um, em cada porta; estas são as mãos que apertam outras mãos humildemente, sem saber que as outras que apertam as tocam como um privilégio dado por um génio.

Aquela é a cabeça que realiza movimentos perpétuos imaginários, construindo peças inteiras sem nunca as ter tocado, que as liberta dando asas sobre o mundo para que este o veja como sempre desejou: harmonioso.

Aquela é a boca que respira e pulsa a cada dedilhado, a cada nota que soa e fica suspensa, ficando um expirar também ele suspenso até à próxima inspiração.
Aqueles são os olhos que se deixam encantar pelo corpo melódico, que vai posando para o filme que realiza, enquanto descreve o quarto em que dorme.

Estas foram as palavras ditas por um poeta de forma diferente. Não as escreveu, tocou-as. Não as disse, dedilhou-as. Rimou-as, alinhou-as, juntou-as como queridas amigas que se sentaram num alpendre de Julho a beber uma ginjinha. Abraçou-as como um pai abraça um filho depois de vir da guerra. Beijou-as como um amante que não quer partir até amanhã. Como um poeta, não se despediu das palavras, deixou-as por cá nos braços da sua guitarra.

 
pequena homenagem ao Mestre Carlos Paredes


E então?

quinta-feira, julho 15, 2004

Cena cortada – Take 8

A loja está fechada. Discuto com o homem, digo-lhe que só quero comprar cigarros, que são só trinta segundos, que se não fumar agora só fumo amanhã, que é muito importante - por favor, por favor, o que é que custa? - o gajo não me liga... o que é que custa?
Esta é a primeira cena de um filme mau, um filme de pipocas, com uma bala em câmara lenta enquanto passa o genérico dizendo o meu nome, perfurando o pescoço mal barbeado, os olhos vidrados, o sangue a espirrar para a montra, o crucifixo a saltar, o homem a morrer e o meu nome bem bonito, artístico, a passar em letras garrafais tamanho catorze.

É tudo tão insanamente bom ou tão vulgarmente trivial que prefiro não olhar para trás. O homem lá ficou, caído, com o meu quase maço de tabaco… ter-lhe-á valido de muito. Passo por uma puta e digo olá. Ela molha os lábios e diz-me vem cá. Respondo-lhe fica para depois. Um velho crava-me um cigarro e eu não tenho mas como sou bem-educado, peço-lhe um trago da aguardente noventa e cinco de álcool etílico. Arde. Arde e sabe bem arder. Bem preciso desta dor. Peço-lhe mais um pouco dessa dor, preciso de recuar um pouco, preciso de me lançar à embriaguês rapidamente e dispensar por uma hora, duas horas, as que forem possíveis, a lembrança que sou indiferente à morte dos outros. Foda-se... preciso de foder. Não! Preciso de dançar, preciso de rodopiar, preciso de me cansar.
Fixo-me a olhar para uma mulher ruiva, olhar negro, camisa de dormir quase transparente. Ao lado, outra mulher, vestido negro e chapéu de plumas negras a condizer. Na mão esquerda um lenço púrpura e na outra, uma trela com um doberman de porte elegante... são só telas numa galeria sofisticada, mas são estas as mulheres que me confortam hoje, não dizem nada e nem precisam, basta-me o seu olhar sem vida atravessando-me, para um ponto lá no infinito onde o destino dobrou uma esquina.
Que saudades de ser criança e ver o mundo pela metade, sem complicações. De correr na rua e falar sozinho sem receio de ser mal interpretado. Olho as mãos e vejo o sangue de uma vida inteira nas mãos. Isto não é um "cartoon" e eu não sou um justiceiro vestido de negro, sou um homem com um reflexo desmaiado e umas olheiras suficientemente grandes para provarem que o meu sono sofre de atrasos crónicos. Sou perdido e achado neste argumento. Sou o protagonista de uma comédia negra, de uma tragédia pessoal, de um "road-movie" que se perdeu no mapa.
Pretendo acordar amanhã na rua, aninhado num vão de escadas, cheio de frio, a precisar urgentemente de um café e de um cigarro.
E então?

quarta-feira, julho 07, 2004

Moléculas a dançar

Debaixo de chuva, num baloiço, num andar para trás e para a frente, visto de cima, visto em rotação, tudo a rodar: as ideias, a cabeça, o mundo... o mundo não pára de rodar, pois não? Nem o tempo de contar.
É um movimento intenso de moléculas que não se entendem no universo, que chocam a toda a hora, que se agitam entrando em lutas titânicas para prevalecerem umas sobre as outras... talvez seja esta a sua forma de entendimento. Talvez nestas unidades tão simples que nos compõe e a tudo o que nos envolve, esteja a chave de tudo isto. Não deixa de ser curioso que partículas ínfimas como os iões, protões e neutrões estejam na origem da vida.

O Miguel está-se nas tintas para os átomos, não dá crédito nenhum a "uma cena que nem se vê"... para ele há que relativizar isto tudo e seguir em frente sem pensar muito nesta história do onde vimos e para onde vamos, que isto de "viver já é muito complicado".

Debaixo de chuva, as moléculas a dançar - um casal jovem, digo - ao som de gotas de percussão em calhas de alumínio, nas telhas de zinco, nos baloiços de madeira e em loiças de porcelana barata, tudo conjugado num ritmo que lhes permite, naqueles ouvidos tapados por moléculas de cera, de harmonizar aquilo numa dança da cópula. Estão excitados e a culpa – não sabem, adivinhem – é das moléculas!
E então?

terça-feira, julho 06, 2004

Passo certo, passo errado

Alguém me vigia os passos e não são as solas gastas dos sapatos que mo dizem. Sinto-o, em toda a parte. O chão vai-se tornando mais duro, vou sentindo cada pedrinha da calçada, um mapa inteiro dos meus percursos incrustado na planta dos pés.
Finjo não perceber que me olham, olho para o solo, olho para "lá". Desfio este meu novelo de pensamentos e memórias, procurando o princípio do "eu sou, eu estou, eu vim e eu vou". Olhos, muitos olhos ou um olho gigantesco com uma íris a devorar-me o corpo inteiro.
E se for realmente engolido por todos os caminhos? E se umas pálpebras me trincarem o rosto, arrancando pedaços de carne e cuspindo-os para uma sanita? Ficarei desfigurado? Perderei a identidade? Serei mais um, mendigando nas ruas da baixa? E se, pior que isso, uma pupila me fixar, fotograficamente, num instante, retendo o meu raciocínio num neurónio alheio? Quem serei? Ou melhor, o que serei? Um vegetal? Um ramo partido e depois queimado e carbonizado?
Não importa, não é relevante. É uma questão de escolha de caminho, é isso que determina tudo.
E então?

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