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Um errante em argolas de fumo mesto

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

Partidas e Chegadas

Como quem deixa um dia a porta de casa e deixa as chaves, descontraidamente no portão do jardim. Como quem diz um olá absolutamente normal a quem tantas vezes lhe sorriu. Como quem um dia, fugiu, quando o que fez foi não parar nem olhar para trás. Um dia já não se sentia respeitável, ou melhor, já não se sentia "aquele" respeitável senhor. Cansou-se de se barbear, de se pentear com a franja ao lado, de vestir aquele fato cinzento e engomado com os vincos certos, de colocar aquelas gravatas foleiras, ou melhor, ainda mais foleiras do que era costume, pois "detesto gravatas!". Aquelas filas intermináveis do trânsito a caminho do emprego, eram parte de um passado que queria recalcar. Aquelas conversas tão artificialmente alegres e activas que os locutores de rádio mantinham às sete e picos da manhã que usava para acordar, nunca mais seriam escutadas. Aqueles bons dias sofríveis que dava de sorriso amarelo aos colegas e chefes, esses nunca mais. Aquele café de máquina, cheio de borras e aqueles muffins de pacote, adeus! Aqueles dias intermináveis de expediente e a colega mamalhuda a flirtar para uma escapadela depois de almoço esses dias... adivinhaste, nunca mais!Naquele dia, saiu, caminhou pelas ruas, bebeu um café decente e bolo ainda mais decente. Folheou um livro e sorriu, não lamentando nunca mais olhar para um relatório cheio de gráficos, gralhas e mau português. Nesse dia viu a luz do dia por entre as esquinas dos quarteirões e percebeu que o que precisava mais, era de alargar os seus horizontes... literalmente. Foi ao aeroporto, olhou para o ecrã das partidas e decidiu qual o destino mais longínquo e arejado. Pela primeira vez, não viajava em turismo ou em trabalho, viajava e isso era-lhe suficiente. Quando lá chegasse, logo decidiria se ficava ou partia para outro destino ainda mais afastado. Decidiu se um dia chegasse aos antípodas, por lá ficaria... sim, esta hipótese satisfazia-o. E então?

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

O grito

É um grito. É mesmo um grito. É um grito no escuro, um rito que se enforma e vai clareando. É um homem e um grito, numa espécie de rito. Há muita gente mas o grito isola-o. E o escuro à volta dele, do grito dele, do alerta dele, da sua revolta ou do seu medo. Grita e ecoa. Já não é um grito, são muitos gritos, são todos os gritos do mundo, não há quem não grite e não há quem não esteja só, isolado no seu grito ou no seu rito.
Os olhos pregados no chão, depois no céu. Os pés inconformados ou talvez só, assustados, movem-se, andam sem parar aos encontrões nos outros gritos. Os olhos raiados, coléricos, depois do grito, narcotizados, aliviados. Gritam, gritam, gritam até se ferirem. Gritam, gritam, gritam até não se fazerem ouvir, até a garganta estar em sangue, até à total rouquidão ou até à cegueira da sua escuridão. O grito é depois, então, um grunhido tão sumido que se torna só seu. Um gemido que jamais poderá ser ouvido.

Gritei-me até me despir, gritei-me tanto que julguei que destruiria a ponte de cristais de sal, erigida sobre o fosso lamacento e movediço das areias do tempo. Julguei que lá cairia, ao invés disso, tudo se solidificou. Já não precisei de gritar, o meu grito tornara-se num canto diatónico, em duas vozes que se erguiam destemidas sobre a calçada fria da cidade. Ao meu lado mais duas vozes e outras duas e outras duas, tantas vozes que os meus ouvidos pudessem alcançar. Todas em uníssono e diatónicas, em coro pela universalidade.
E então?

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