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Um errante em argolas de fumo mesto

terça-feira, março 15, 2005

A reconstrução de um quadro

Ali ao fundo da pintura, no recanto, seguro, quase escondido, olhas absorto para algo que olhando assim não conseguirei descortinar. Toco. Talvez tacteando o traço possa sentir as cores daquilo que olhas ou daquilo que sentes ao olhar aquilo que para mim é ainda incolor. Parece complicado. Talvez olhando o quadro como um cego, ajude a analisar o odor e a desfiar quase sinapticamente - poderia se esta palavra existisse - as filigranas de cada um dos teus raciocínios sobre o que observaste.
Deixa que te diga, não preciso entender uma palavra da tua língua. Poderás falar árabe ou aramaico que para mim será igual. Tu comunicas com a pele, com a barba branca, com o cajado que seguras nas mãos calejadas do trabalho e das temperaturas extremas que te ferem a derme. As tuas mãos falam-me muito. Acham que ainda poderás acrescentar alguns Invernos à tua lavoura. As tuas unhas negras da terra, dizem-me que gostas de mexer na terra, de falar com ela, de apanhá-la desprevenida enquanto a deixas escapar entre os teus dedos diante dos teus olhos. Outra vez os olhos. Esse verde-azeitonado tranquilo como uma velha oliveira. Esses olhos que esclarecem quando se enchem de lágrimas cada vez mais gordas de quando em vez. Não é fácil ver tudo destruído. Ou tudo ardido. Ou tudo interrompido por uma pausa que tu não pediste

O bombardeamento suspendeu-lhe a vida, levou-lhe toda a vida: a mulher companheira, a filha, o genro e dois netos. Levou-lhe amigos daqueles que construíram as suas recordações de rapaz. O gado, dizimado. Até o seu cão, aos pedaços. Toda uma existência, em breves minutos, reduzida a crateras provocadas com bombas com nome de mulher estrangeira.
Yusef escapou porque pastava o gado tranquilamente a distância segura. Ouviu tudo. Viu tudo. Foi impotente. Como poderia avisar a aldeia que os dois aviões iam bombardeá-los? Quem é que haveria de querer assassinar gente pobre e sobrevivente do deserto? Eram grãos de areia no mundo. Só a Lua e o Sol sabiam da sua existência. Aquilo não era suposto ter acontecido… mas aconteceu. E ele sabia isso. Sabia quando mexia na barba que depois daquilo estava só com as suas recordações, com a sua mágoa. Sabia que tudo isto era uma injustiça... mas de facto, nada sabia.
Enterrou os mortos, reconstruiu a sua casa e aos poucos foi lavrando a terra e arranjando novos animais. O deserto estava mais deserto mas as estrelas continuariam a brilhar, talvez agora até mais fortes. E então?

quarta-feira, março 09, 2005

Um brilho na escuridão

Eu hei-de ver-te brilhar na escuridão, tal como a luz se há-de diluir nas estreitas frestas de portas pesadas de uma qualquer igreja perdida numa aldeia morta. O fogo por aí não encontrará alimento, a ninguém roubará a vida - ali não há vida, só escombros - naqueles caminhos de terra disfarçados com ervas daninhas.
Debaixo de um ou outro telheiro ainda se encontram vestígios deixados por alguém que fugiu à pressa: talheres, um ou outro trapo e até um braço de uma boneca arrancado pela urgência. O vento ali não afecta ninguém, nem o frio queima a pele de algum lavrador desprevenido. A vida ali, em tempos, empilhou-se como folhas de xisto, até ter formado várias camadas de passado. O passado...
Olha-se em redor, fecham-se os olhos e voltam-se abrir, mas desta vez com um filtro a preto e branco. Ali é impossível verem-se todas as tonalidades de cinzento e as cores, esbateram-se num dia já quase esquecido por três – quase quatro – gerações. Poucos se lembram do que terá acontecido. Eu arrisco que ninguém se lembra, pelo menos de ter presenciado o sucedido. Uns dizem que foi uma rixa, uma luta entre duas famílias. Outros, que foi uma velha rivalidade entre duas aldeias. Outros, que a terra foi perdida ao jogo e que o povo foi expulso para que dali se fizesse uma coutada. A verdade e não o motivo, é que ali existe, hoje, um terreno para caça. A casa daquela gente, assassinada.
Resguardada pelo casario, uma cabra dá à luz. Ao longe, ao longe, assustada, uma manada de veados - vejo-os de fugida - foge para outra colina, resguardados pelos arbustos e sobreiros. Nunca tinha visto veados, são lindos. Saltitam elegantes como se o mundo fosse um imenso colchão.
Percorro o vale ao longo de um longo muro de xisto, construído por mãos minuciosas. É um complicado puzzle, com peças devidamente encaixadas, que ao correr da luz parecem uma simples linha que acompanha o vale e o subir da encosta. Falo em camuflagem e daqui do alto, já não descubro a aldeia, está despercebida, disfarçada na paisagem. Faz lembrar um daqueles jogos em que nos pedem que descubramos uma imagem a partir de outra. Assim está lá, disfarçada de natureza. E se pensar bem, é o que ela é agora, parte de um vale, rochas em forma de casa. Quem lá viveu, já não está lá. Sim, o velhote que ali se viu nascido, crescido, os avós a morrer, os pais a envelhecer, os filhos a nascer (sim, todos nasceram na sua casa, à excepção do mais velho que nasceu na casa da avó no fundo da aldeia, junto ao centenário moinho), "que céus!" a filha do meio a morrer no parto e o genro a correr em direcção ao Tejo, jurando afogar-se, não chegando nunca a molhar sequer os pés – tropeçou até à morte, batendo com a cabeça a dois metros do Majestoso e Tranquilo. O velho sobreviveu a muitos, mas não sobreviveu à sua mulher, a (presumivelmente) velha Elisabete, que tinha nome de rainha mas era rija como o granito que se encontra a alguns quilómetros a norte. O velho foi encontrado morto, com a cabeça encostada à ribeira da aldeia, como se esta lhe murmurasse o segredo de correr tão fresca.
Morreu dois dias antes da aldeia ser escorraçada. A velha Elisabete, não deixou o marido e também ela, deixou a ribeira murmurar-lhe ao ouvido a doce cantilena do descanso eterno, não se queria separada e fora de casa. E então?

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

Partidas e Chegadas

Como quem deixa um dia a porta de casa e deixa as chaves, descontraidamente no portão do jardim. Como quem diz um olá absolutamente normal a quem tantas vezes lhe sorriu. Como quem um dia, fugiu, quando o que fez foi não parar nem olhar para trás. Um dia já não se sentia respeitável, ou melhor, já não se sentia "aquele" respeitável senhor. Cansou-se de se barbear, de se pentear com a franja ao lado, de vestir aquele fato cinzento e engomado com os vincos certos, de colocar aquelas gravatas foleiras, ou melhor, ainda mais foleiras do que era costume, pois "detesto gravatas!". Aquelas filas intermináveis do trânsito a caminho do emprego, eram parte de um passado que queria recalcar. Aquelas conversas tão artificialmente alegres e activas que os locutores de rádio mantinham às sete e picos da manhã que usava para acordar, nunca mais seriam escutadas. Aqueles bons dias sofríveis que dava de sorriso amarelo aos colegas e chefes, esses nunca mais. Aquele café de máquina, cheio de borras e aqueles muffins de pacote, adeus! Aqueles dias intermináveis de expediente e a colega mamalhuda a flirtar para uma escapadela depois de almoço esses dias... adivinhaste, nunca mais!Naquele dia, saiu, caminhou pelas ruas, bebeu um café decente e bolo ainda mais decente. Folheou um livro e sorriu, não lamentando nunca mais olhar para um relatório cheio de gráficos, gralhas e mau português. Nesse dia viu a luz do dia por entre as esquinas dos quarteirões e percebeu que o que precisava mais, era de alargar os seus horizontes... literalmente. Foi ao aeroporto, olhou para o ecrã das partidas e decidiu qual o destino mais longínquo e arejado. Pela primeira vez, não viajava em turismo ou em trabalho, viajava e isso era-lhe suficiente. Quando lá chegasse, logo decidiria se ficava ou partia para outro destino ainda mais afastado. Decidiu se um dia chegasse aos antípodas, por lá ficaria... sim, esta hipótese satisfazia-o. E então?

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

O grito

É um grito. É mesmo um grito. É um grito no escuro, um rito que se enforma e vai clareando. É um homem e um grito, numa espécie de rito. Há muita gente mas o grito isola-o. E o escuro à volta dele, do grito dele, do alerta dele, da sua revolta ou do seu medo. Grita e ecoa. Já não é um grito, são muitos gritos, são todos os gritos do mundo, não há quem não grite e não há quem não esteja só, isolado no seu grito ou no seu rito.
Os olhos pregados no chão, depois no céu. Os pés inconformados ou talvez só, assustados, movem-se, andam sem parar aos encontrões nos outros gritos. Os olhos raiados, coléricos, depois do grito, narcotizados, aliviados. Gritam, gritam, gritam até se ferirem. Gritam, gritam, gritam até não se fazerem ouvir, até a garganta estar em sangue, até à total rouquidão ou até à cegueira da sua escuridão. O grito é depois, então, um grunhido tão sumido que se torna só seu. Um gemido que jamais poderá ser ouvido.

Gritei-me até me despir, gritei-me tanto que julguei que destruiria a ponte de cristais de sal, erigida sobre o fosso lamacento e movediço das areias do tempo. Julguei que lá cairia, ao invés disso, tudo se solidificou. Já não precisei de gritar, o meu grito tornara-se num canto diatónico, em duas vozes que se erguiam destemidas sobre a calçada fria da cidade. Ao meu lado mais duas vozes e outras duas e outras duas, tantas vozes que os meus ouvidos pudessem alcançar. Todas em uníssono e diatónicas, em coro pela universalidade.
E então?

quarta-feira, janeiro 19, 2005

666 - Um lugar do Diabo

Aqui, onde o monte se junta à manhã e a neblina escorrega em insinuantes e sinuosas gotículas. O vento vai-me beijando, abraçam-me em silêncio as cigarras e um cigarro é amigo nas sombras mais escondidas de cada buraco da noite e no versejar enigmático das folhas do plátano. Incontáveis bichos fazem a sua vida, preguiçando como gostam, trabalhando ao ritmo a que podem.
Fecha o livro, encerra as páginas, adormece na rede, na sede de paz entretanto saciada. És tranquilidade e por isso voz de aconchego desta carícia… delícia, este chá de Lúcia Lima arrefecendo fumegante ao sopro ligeiro da tua boca entre as minhas mãos.
No alto do monte, afastado do mundo, vê-se terra e o mar, vêem-se alguns vales, lezírias ribatejanas, uma serra, outra serra: Sintra e Candeeiros. Além a foz do Arelho e a península do Baleal. Seiscentos e sessenta e seis metros de altitude de onde o Diabo vê tudo, desde a alma até ao pecado. Aqui o ar é tão limpo e puro que os pulmões viciados e poluídos nos doem a cada golfada de oxigénio, o peito rasga-se, a pele gela e o corpo vive mais um pouco.
O Demo gosta de ver tudo a nu.
E então?

domingo, julho 25, 2004

A morfologia do Mestre Paredes
 
Ouve um discurso a sussurrar nas pontas dos dedos: firmes, ágeis e livres para se lançarem ao bailado do vento.

Estas são as mãos que mexem e remexem nos poros fazendo festas; estas são as mãos que recolhem cravos vermelhos para distribuírem um por um, em cada porta; estas são as mãos que apertam outras mãos humildemente, sem saber que as outras que apertam as tocam como um privilégio dado por um génio.

Aquela é a cabeça que realiza movimentos perpétuos imaginários, construindo peças inteiras sem nunca as ter tocado, que as liberta dando asas sobre o mundo para que este o veja como sempre desejou: harmonioso.

Aquela é a boca que respira e pulsa a cada dedilhado, a cada nota que soa e fica suspensa, ficando um expirar também ele suspenso até à próxima inspiração.
Aqueles são os olhos que se deixam encantar pelo corpo melódico, que vai posando para o filme que realiza, enquanto descreve o quarto em que dorme.

Estas foram as palavras ditas por um poeta de forma diferente. Não as escreveu, tocou-as. Não as disse, dedilhou-as. Rimou-as, alinhou-as, juntou-as como queridas amigas que se sentaram num alpendre de Julho a beber uma ginjinha. Abraçou-as como um pai abraça um filho depois de vir da guerra. Beijou-as como um amante que não quer partir até amanhã. Como um poeta, não se despediu das palavras, deixou-as por cá nos braços da sua guitarra.

 
pequena homenagem ao Mestre Carlos Paredes


E então?

quinta-feira, julho 15, 2004

Cena cortada – Take 8

A loja está fechada. Discuto com o homem, digo-lhe que só quero comprar cigarros, que são só trinta segundos, que se não fumar agora só fumo amanhã, que é muito importante - por favor, por favor, o que é que custa? - o gajo não me liga... o que é que custa?
Esta é a primeira cena de um filme mau, um filme de pipocas, com uma bala em câmara lenta enquanto passa o genérico dizendo o meu nome, perfurando o pescoço mal barbeado, os olhos vidrados, o sangue a espirrar para a montra, o crucifixo a saltar, o homem a morrer e o meu nome bem bonito, artístico, a passar em letras garrafais tamanho catorze.

É tudo tão insanamente bom ou tão vulgarmente trivial que prefiro não olhar para trás. O homem lá ficou, caído, com o meu quase maço de tabaco… ter-lhe-á valido de muito. Passo por uma puta e digo olá. Ela molha os lábios e diz-me vem cá. Respondo-lhe fica para depois. Um velho crava-me um cigarro e eu não tenho mas como sou bem-educado, peço-lhe um trago da aguardente noventa e cinco de álcool etílico. Arde. Arde e sabe bem arder. Bem preciso desta dor. Peço-lhe mais um pouco dessa dor, preciso de recuar um pouco, preciso de me lançar à embriaguês rapidamente e dispensar por uma hora, duas horas, as que forem possíveis, a lembrança que sou indiferente à morte dos outros. Foda-se... preciso de foder. Não! Preciso de dançar, preciso de rodopiar, preciso de me cansar.
Fixo-me a olhar para uma mulher ruiva, olhar negro, camisa de dormir quase transparente. Ao lado, outra mulher, vestido negro e chapéu de plumas negras a condizer. Na mão esquerda um lenço púrpura e na outra, uma trela com um doberman de porte elegante... são só telas numa galeria sofisticada, mas são estas as mulheres que me confortam hoje, não dizem nada e nem precisam, basta-me o seu olhar sem vida atravessando-me, para um ponto lá no infinito onde o destino dobrou uma esquina.
Que saudades de ser criança e ver o mundo pela metade, sem complicações. De correr na rua e falar sozinho sem receio de ser mal interpretado. Olho as mãos e vejo o sangue de uma vida inteira nas mãos. Isto não é um "cartoon" e eu não sou um justiceiro vestido de negro, sou um homem com um reflexo desmaiado e umas olheiras suficientemente grandes para provarem que o meu sono sofre de atrasos crónicos. Sou perdido e achado neste argumento. Sou o protagonista de uma comédia negra, de uma tragédia pessoal, de um "road-movie" que se perdeu no mapa.
Pretendo acordar amanhã na rua, aninhado num vão de escadas, cheio de frio, a precisar urgentemente de um café e de um cigarro.
E então?

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